a vida muda num instante. você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.
leituras, links e pensamentos de março
tenho andado com dificuldade de escrever. de todas as vezes que digitei, falei ou pensei nessas palavras, esta é, de fato, a mais verdadeira. no ano passado, no início da pandemia, as palavras foram as minhas melhores companheiras. eu sentia uma necessidade absurda de tentar expressar tudo o que sentia, seja por meio de escritos no diário (a tal das morning pages), seja em longas conversas no whatsapp ou até mesmo por reflexões que compartilhava no instagram (rolou até o #diariodaquarentena).
hoje, a sensação é de vazio. como se eu não tivesse forças ou sequer coragem de tentar elaborar qualquer coisa que me atravessa. dito isso, passei a recorrer a minha grande ferramenta de sobrevivência: a leitura.
revisitei alguns livros preferidos nesses últimos dias, só pelo hábito de folheá-los e me deixar surpreender pelo que surgiria. um deles foi “A insustentável leveza do ser”, do Milan Kundera. e me veio uma passagem que é muito simbólica sobre vertigem.
“O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados”
no enredo, acompanhamos a história de tereza, tomas, sabina e franz, todos os quatro atordoados de alguma forma. e, todos eles, de alguma forma imersos em seus próprios casulos. como se, em tempos complexos, a nossa única vontade fosse apenas abraçar a nós mesmos e ficarmos ali, apenas espreitando a cabeça para avistar se o mundo continua mundo. é a vertigem, como diz Kundera, que não é apenas o medo de cair, mas uma inegável atração. esse pensamento perpassa o livro à medida em que o autor trabalha a ideia de que cair e se entregar, ceder e se deixar sucumbir, também faz parte da experiência humana.
livros que li
O ano do Pensamento Mágico, Joan Didion
esse relato autobiográfico já entrou para a lista de preferidos da vida. no livro, Joan revisita as suas memórias a partir da morte do seu marido, o também escritor John Dunne. não chega a ser um diário, mas é quase isso. é uma reconstrução da sua dor e do seu luto. e é obviamente triste, mas também engraçado e profundamente verdadeiro.
o seu espanto ao se deparar com a morte, o seu processo de aceitar que o seu marido não vai voltar, as fugas e seu processo de autoconvencimento de que seus rituais e rotina foram completamente transformados.
mas talvez, o que mais me supreendeu na leitura foi o quanto eu me identifiquei com o processo de Joan, mesmo estando em um contexto completamente diferente do dela. digo isso porque em seu processo ela recorre a uma ferramenta a qual eu sou completamente adepta: a ilusão de controle por meio da informação.
talvez seja coisa de jornalista, não sei, mas o que Joan faz é tentar enfrentar o seu torpor de sensações e emoções por meio de conhecimentos tangíveis. “informação é poder”, ela escreve diversas vezes em suas páginas. e poder é controle - ou a ilusão que criamos sobre isso. e controle, por sua vez, é uma garantia de que você tenta ter algum mínimo domínio de sua própria realidade, mesmo quando isso é quase impossível.
foi assim com Joan. tem sido assim comigo nos últimos meses.
a autora, o marido e a filha Quintana Roo Dunne, que inspirou o livro “Noites Azuis”
“O sofrimento vem em ondas, como um acesso, um ataque, em súbitas apreensões que enfraquecem os joelhos, cegam os olhos e transtornam o cotidiano da vida da gente.”
Crônica do Pássaro de Corda, Haruki Murakami
sem novidades por aqui, mas o Murakami é um dos meus autores contemporâneos favoritos. é aquele que eu sempre recorro quando preciso de um pouquinho de fantasia nos meus dias. nesse título, Murakami trabalha com um dos temas mais marcantes em suas narrativas: a solidão. ao mesmo tempo, somos apresentados a um grupo de personagens que possuí algo em comum: uma busca incessante por achar o significado a partir de experiências que marcaram a sua vida e que, de alguma forma, moldaram a sua história. em um labirinto, que se mescla a uma crítica contundente a história bélica do Japão, somos guiados por esses personagens e suas buscas por meio de uma série de acontecimentos bizarros, desde o sumiço de um gato até as efemeridades do amor.
"Vejam bem, todas as coisas são complexas e, ao mesmo tempo, muito simples. Essa é a regra básica que controla o mundo. Não podemos nos esquecer disso. Mesmo quando as coisas parecem e são complexas, na verdade a motivação por trás é bem simples. A questão é: o que nós buscamos. A motivação é, em outras palavras, a raiz do desejo. O importante é encontrar essa raiz e, para isso, é preciso cavar para além da superfície confusa da realidade. Cavar até o fim. Cavar até encontrar essa raiz."
"Será que é possível uma pessoa entender completamente a outra? Quando tentamos compreender alguém e dedicamos muito tempo e esforço sincero, até que ponto podemos nos aproximar da essência do outro? Será que sabemos mesmo a parte que realmente importa de quem acreditamos conhecer bem?"
A Redoma de Vidro, Sylvia Plath
eu não esperava. apenas isso: eu não esperava a paulada que veio com essa leitura. intenso, provocante, identificável. o livro conta a história da jovem promissora Esther Greenwood. aos 18 anos, ela saí dos subúrbios de Boston para uma prestigiosa universidade e ganha uma bolsa de estudos em Nova York. essa parece ser a oportunidade dos sonhos para a garota que deseja mudar de vida, mas se torna o gatilho de uma crise emocional que leva Esther diretamente para uma internação em uma crise psiquiatrica.
para além das discussões sobre o papel da mulher e das várias opressões da sociedade, o que mais me envolveu na leitura foi a escrita de Plath que consegue trazer de uma forma muito sublime a sensação interior de Esther. é realmente como se estivéssemos na cabeça da personagem, muitas vezes nos levando a questionar o que seria a realidade ou resultado da paranoia que ela vivenciava.
o livro, ainda, ganha outro patamar quando você percebe que ele está cheio de referências autobiográficas. com apenas 30 anos, no auge de uma carreira sólida, uma família estruturada, Sylvia Plath morreu por suicídio - exatamente um mês a publicação deste que foi o seu único romance.
A Redoma de Vidro é muitas coisas, mas é sobretudo, um livro que joga luz sobre o quadro de depressão - e como ainda não sabemos lidar com a doença.
“Na ponta de cada galho havia um figo maduro − um maravilhoso futuro. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos; outro, ser uma poeta famosa; outro, uma professora ilustre e mais outro era ser Éxis, a incrível editora; outro, conhecer a Europa, África e América do Sul e ainda outro era Constantin, Sócrates, Átila e um monte de outros namorados com nomes estranhos e profissões esdrúxulas; e um figo era ser campeã olímpica de equipe de remo e além desses tinha tantos outros figos que eu não conseguia nem ver.
Imaginei que estava sentada embaixo da figueira, morrendo de fome por não decidir que figo escolher. Queria todos, mas, escolhendo um, não podia pegar os outros e, enquanto ficava sentada ali, incapaz de resolver, os figos começaram a amadurecer, apodrecer e cair aos meus pés.”
links que salvei
The 100 best nonfiction books of all time: the full list (O Ano do Pensamento Mágico é o segundo da lista)
Publicado trinta anos após sua morte, romance inédito de Simone de Beauvoir é uma ode a amizade de infância da autora
até a próxima!
💋bia
a vida muda num instante. você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.
adorei!
adorei! os dois últimos parecem muito bons também! estou com vontade de ler todos